Resenha do livro Eleitos,
mas livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o
livre-arbítrio (São Paulo:
Editora Vida, 2001), 284 p. Traduzido por Heber Carlos de Campos do original
inglês Chosen but free (1999).
Norman Geisler é formado no Wheaton
College (BA e MA.), Detroit Bible College (Th.B.) e na Universidade Loyola
(Ph.D.). Durante muito tempo foi professor no Seminário Teológico de Dallas, e
atualmente é presidente do Southern Evangelical Seminary, em Charlotte, na
Carolina do Norte. Ele já tem vários volumes publicados em português, incluindo
Ética cristã e Introdução à filosofia: uma perspectiva cristã (Vida Nova) e, em
co-autoria, Resposta às seitas (CPAD), Reencarnação (Mundo Cristão) e Amar é
sempre certo (Candeia).
O mais recente lançamento de Geisler é
intitulado Eleitos, mas livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição
divina e o livre-arbítrio. O livro tem oito capítulos principais, e mais doze
apêndices. Na primeira parte, Geisler lida com o problema da soberania de Deus
e da liberdade humana, apontando as alternativas históricas (calvinismo e
arminianismo) e propondo sua visão do assunto, que ele assume como “calvinismo
equilibrado” (em contraposição ao que ele chama de “calvinismo extremado”).
Seus capítulos finais tratam do “arminianismo extremado” e com um apelo à
moderação. Seus apêndices cobrem uma ampla gama de estudos históricos e
teológicos, ligados ao tema do livro.
Ao se começar a leitura desta obra, não
se leva muito tempo para que o leitor teologicamente mais instruído passe a
entender que este trabalho é qualquer coisa menos uma “visão equilibrada” da
eleição. Eleitos, mas livres tem a intenção de apresentar um ponto de vista que
é simplesmente uma forma de arminianismo disfarçado com outro nome, algo tão
óbvio que o leitor gostaria de saber como exegetas e teólogos da estatura de
João Calvino, John Owen, B.B. Warfield e John Murray não viram isto!
O livro tem três problemas principais.
O primeiro problema que atinge o leitor é a tentativa descarada de Geisler de
redefinir a terminologia teológica tradicional. Por exemplo, em seu
entendimento, “calvinista extremado é alguém que é mais calvinista do que João
Calvino (1509-1564), de cujos ensinos vem o termo. Visto ser possível argumentar
que João Calvino não cria na expiação limitada (...), segue-se que todos os que
o fazem são calvinistas extremados” (p. 63). Ele assume que há uma
descontinuidade dentro da tradição reformada, seguindo a controversa tese de R.
T. Kendall (mencionado numa nota de rodapé na página 177) – mas em nenhum lugar
ele interage com respostas eruditas que já foram escritas refutando este ensino
(cf. as obras de Paul Helm, Calvin and Calvinists, e o erudito trabalho de Joel
Beeke, The quest for full assurance, ambos lançados pela Banner of Truth, este
último a ser lançado em português)!
Aliás, em seu apêndice sobre Calvino
(ap. 2) ele concentra-se apenas na questão do alcance da expiação (passando por
cima dos comentários de Calvino que dariam margem para a crença na expiação
eficaz), simplesmente ignorando todo o ensino do reformador sobre eleição e
responsabilidade moral. O mais irônico é que ele também não demonstra estar em
acordo com estas formulações de Calvino!
Geisler já havia feito tal coisa com
Agostinho! Vale a pena dar uma lida em seu verbete “Agostinho de Hipona”, em
Walter A. Elwell, Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã, vol. 1
(Vida Nova), pp. 32-35. Neste texto ele simplesmente afirma que Agostinho cria
numa eleição baseada na presciência de Deus! Agora ele afirma que este ensino
pertence ao “jovem” Agostinho, em contraposição com o “velho” (por que não
maduro?), ligando seu ensino “extremado” com o cisma donatista (cf. ap. 3)! Um
aluno de história da Igreja mais atento tomaria um susto aqui! Pois os
principais escritos de Agostinho, relacionados com as doutrinas da graça, foram
escritos no auge da controvérsia pelagiana!
Mesmo o uso que Geisler faz dos Pais da
Igreja não é livre de confusões (cf. ap. 1). O ensino destes mesmos Pais é bem
ambíguo neste ponto, contendo declarações que apoiariam os dois lados do
debate. Basta dar uma lida nos escritos de alguns dos Pais mencionados, como
Justino ou Irineu. É revelador que ele cite de passagem a famosa obra do
erudito batista John Gill, The cause of God & truth, mas não mencione sua
cuidadosa exegese bíblica, nem o tratamento erudito das fontes pós-apostólicas,
onde ele demonstra que Agostinho não inventou uma nova doutrina, ele
simplesmente sistematizou o pensamento dos pais que vieram antes dele.
O segundo problema que o leitor mais
avisado achará é um fluxo quase contínuo de caricaturas relativas à posição de
seus oponentes. É elogiável a bibliografia seleta que Geisler usa. Mas em
nenhum momento ele interage seriamente com suas fontes. Ele constantemente está
citando eruditos reformados do passado e do presente (tais como John Owen,
William Ames e Jonathan Edwards, R. C. Sproul, John Piper e John Gerstner), mas
muitas de suas citações são retiradas de contexto, não fazendo jus à
argumentação dos escritos destes homens.
Por exemplo, em seu tratamento do
entendimento de Edwards sobre o livre-arbítrio, ele cita um resumo desta obra,
e não a obra completa (p. ex. notas n. 2 e 5, cf. referência bibliográfica na
p. 281)! Onde ele responde aos argumentos de Edwards nesta obra, que tem sido
considerado um clássico da filosofia? Parece que ele tenta responder aos
argumentos de Sproul (que resume Edwards, em sua obra mencionada na nota n. 1 e
4), e não a obra original! O leitor atento acabará por ver que as posições
destes eruditos citados acima são mal interpretadas ou falseadas, como também as
notas de rodapé algumas vezes não têm ligação nenhuma com a declaração que
pretende-se que apoiem. Outro ponto importante que poderia ser mencionado é que
Geisler precisou redefinir os cinco pontos do calvinismo, para ele mesmo se autodenominar
“calvinista moderado” (cf. cap. 7, esp. p. 132).
O terceiro problema é uma negligência
geral de real exegese, em favor de meras afirmações sem grande apoio nas
línguas originais. Ainda que ele cite e ofereça sua interpretação de muitos dos
textos-chave do debate (geralmente sem considerar o contexto onde estes mesmos
textos estão inseridos), ele pouco interage com justiça com a interpretação que
os reformados têm feito deles. Muitas vezes as formulações dos comentaristas
reformados são simplesmente retiradas do contexto! Talvez quem mais sofra com
isto seja o erudito batista John Piper. Num debate tão complicado como este não
são clichês que resolverão a tensão, mas exegese. Recomendaria com muita força
o estudo atento dos comentários de Romanos, Gálatas, Efésios e Hebreus, de F.
F. Bruce, John Stott, William Hendriksen e de João Calvino (todos em
português). O melhor que o leitor pode fazer é conferir a interpretação que
estes eruditos cristãos fizeram com o próprio texto bíblico.
É revelador também que em nenhum lugar
Geisler oferece uma definição de livre-arbítrio, ele apenas pressupõe que ele
existe, e, ai, passa a buscar textos bíblicos que validem sua posição (não
parece ser isto que ele faz no ap. 4?). Aliás, onde, nas Escrituras, é
mencionado que o livre-arbítrio faz parte da imago Dei?
Quando ele menciona os perigos práticos
do “calvinismo extremado” (que, agora, num lapso lógico esquisito, passa a
rotulá-los como hiper-calvinistas), Geisler simplesmente repete clichês que já
foram refutados por vários eruditos. Ironicamente ele menciona o importante
estudo de Iain Murray, Spurgeon v. hyper-calvinismo: the battle for Gospel
preaching (Banner of Truth), mas cita-o fora do contexto, sem interagir com o
próprio livro ou com a posição de C. H. Spurgeon, ele mesmo um batista
reformado, e um dos mais importantes pregadores e evangelistas da história da
Igreja.
Permanece um mistério por que Geisler
insistiu em redefinir uma terminologia que é reconhecida comumente por todos os
lados do debate. Em lugar de clarificar a discussão, ele a nublou, o que não
serve a nenhum propósito, e, na pior das hipóteses, engana aqueles que são
menos instruídos na discussão relativa a estes pontos. O mais irritante de tudo
isto é que seu livro é embalado por um discurso pretensamente lógico e
filosófico. Do calvinismo histórico Geisler só mantém a doutrina da
perseverança dos santos – mas isto, quando muito, é um arminianismo
inconsistente! Ele teria prestado um grande serviço a seus leitores se
admitisse simplesmente sua posição, em lugar de confundir o assunto com
definições artificialmente impostas.
Sua tentativa de refutação daquilo que
ele rotula de “arminianismo extremado” é irônica. Esta nova tendência surgiu em
certos círculos evangélicos americanos, a partir do fim da década de 1980.
Teólogos como Clark Pinnock e John Sanders tem defendido uma variante da
teologia do processo, conhecida como “free will theism”. Eles têm afirmado que
Deus nem é soberano nem tem conhecimento do futuro. Em última instância, o
futuro é uma possibilidade aberta. Mas Geisler, em sua resposta à este novo
movimento teológico, por causa de sua redefinição da soberania de Deus, para
adequá-la à sua crença no livre-arbítrio, só pode se refugiar no
irracionalismo, contra as implicações filosóficas desta vertente.
Examinar e responder a cada inexatidão
achada em Eleitos, mas livres requereria um livro inteiro. Recomendaria o livro
Soberania banida, de R. K. McGregor Wright (Cultura Cristã), que talvez seja a
melhor defesa da fé reformada histórica. O interessante é que ele é mencionado
de passagem umas duas vezes, mas Geisler nem interagem com esta importante
obra! Para um bom estudo histórico desta controvérsia, honesto e erudito, mas
escrito de forma popular, recomendaria Sola Gratia, de R. C. Sproul (Cultura
Cristã). Este livro aborda as diferentes posições de Pelágio, Agostinho, João
Cassiano, Martinho Lutero, João Calvino, Tiago Armínio, Jonathan Edwards,
Charles Finney e Lewis Chafer. Cada capítulo, além da avaliação do ensino de
cada teólogo, tem leituras complementares, além de uma lista de obras
significativas de todos deles, para cada leitor, ao ir direto às fontes, e
chegar às suas próprias conclusões.
Deve ser mencionado que Geisler, em
meio às controvérsias que se seguiram à subscrição de alguns líderes
evangélicos ao documento “Evangélicos e Católicos Juntos: Missões Cristãs no
Terceiro Milênio” (1997), algum tempo depois, em palestra à “Theological
Evangelical Society”, afirmou que não existe nenhuma diferença substancial
entre o ensino bíblico da justificação pela graça e o ensino católico romano,
como afirmado nos Cânones de Trento! Este fato talvez exponha seus reais
pressupostos teológicos e filosóficos, ao tentar misturar a fé evangélica com
um neo-tomismo aristotélico de tendências racionalizantes.
FONTE: http://ospuritanos.blogspot.com.br/2012/04/eleitos-mas-livres.html.
Franklin Ferreira é mestre em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Sul
do Brasil, foi professor de teologia sistemática e história da igreja no
Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil no Rio de Janeiro (1997-2007) e
professor visitante no Seminário Teológico Servo de Cristo, São Paulo
(2002-2006). É autor dos livros Gigantes da Fé e Agostinho de A a Z e também
Teologia Sistemática publicado por Edições Vida Nova.
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