REFORMADORES EM GENEBRA

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sábado, 25 de julho de 2015

A ALMA CATÓLICA DOS EVANGÉLICOS BRASILEIROS - Augustus Nicodemus



Os evangélicos no Brasil nunca conseguiram se despir totalmente da influência do catolicismo romano. Nisso reside, em parte, a raiz da atual crise que experimentam.
Por séculos, o catolicismo formou a mentalidade brasileira. O crescimento do número de evangélicos no Brasil é cada vez maior – segundo estimativas do IBGE, seriam 40 milhões só no ano de 2006 –, mas há várias evidencias de que boa parte dos evangélicos não tem conseguido se livrar de herança católica, que ultrapassa em muito a simples presença, em nosso vocabulário, de expressões com Vixe! Ave Maria! Nossa Senhora!
É um fato que conversão verdadeira (arrependimento e fé) implica uma mudança espiritual e moral, mas não significa necessariamente mudança de cosmovisão. Alguém pode ter sido regenerado pelo Espirito e ainda continuar, por um tempo, a enxergar as coisas com os pressupostos antigos. É o caso dos crentes de Corinto. Alguns deles haviam sido impuros, idólatras, adúlteros, efeminados, sodomitas, ladrões, avarentos, bêbados, maldizentes e roubadores. Todavia, haviam sido lavados, santificados e justificados “no nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito de nosso Deus” (1Co 6:9-11) sem que essa mudança correspondesse a um giro completo de mentalidade entre eles. Na primeira carta que lhes escreve, Paulo revela duas áreas em que eles continuavam a agir como pagãos: na maneira grega dicotômica de ver o mundo dividido em matéria e espírito (o que dificultava a aceitação das relações sexuais no casamento e da ressurreição física dos mortos – caps. 7 e 15) e o culto à personalidade mantido para com os filósofos gregos (que logo os levou a formar partidos na igreja em torno de Paulo, Pedro, Apolo e até mesmo o próprio Cristo – caps. 1 a 4). Eles eram cristãos, mas com a alma grega pagã.
Da mesma forma que em Corinto, creio que grande parte dos evangélicos no Brasil tem a alma católica. Antes de passar às argumentações, preciso esclarecer um ponto. Todas as tendências que identifico entre os evangélicos como herança católica, no fundo, antes de serem católicas, são realmente tendências da nossa natureza humana decaída, corrompida e manchada pelo pecado, manifestas em todos os sistemas e não somente no catolicismo. Como declarou o reformado R. Hooykas, famoso historiador da ciência, “no fundo, somos todos romanos”1. Todavia, alguns sistemas são mais que outros, como penso que é o caso do catolicismo brasileiro. E que tendências são essas?
1.             O gosto por bispos e apóstolos. Na Igreja católica, o sistema papal impõe autoridade de um único homem sobre todo o povo. A distinção entre clérigos (padres, bispos, cardeais e o papa) e leigos (povo comum) eleva os sacerdotes católicos a um nível superior, como se revestidos de autoridade, carisma, espiritualidade inacessível, o que provoca admiração e espanto da gente comum, infundindo respeito e veneração. Há um gosto na alma brasileira por bispos, catedrais, pompas, rituais. Só assim consigo entender a aceitação generalizada por parte dos próprios evangélicos de bispos e apóstolos autonomeados, mesmo após Lutero ter rasgado a bula papal que o excomungava, queimando-a na fogueira. A doutrina reformada do sacerdócio universal dos crentes e a abolição da distinção entre clérigos e leigos ainda não permearam a cosmovisão dos evangélicos no Brasil, com poucas exceções.
Um dos requisitos para o apostolado no Novo Testamento é ser testemunha da ressurreição de Cristo (At 1:21-22). Todos os apóstolos viram o Cristo ressurreto, inclusive Paulo (1Co 15:5-8). Não tiveram visão, sonho ou revelação, mas de fato Cristo lhes apareceu pessoalmente no corpo da ressurreição – inclusive a Paulo no caminho de Damasco (1Co 9:1). O cristianismo histórico sempre entendeu que Paulo foi o último (João na ilha de Patmos esteve diante de uma visão, e não de uma aparição física do Cristo ressurreto, cf. Ap 1:12-16). Além disso, os apóstolos foram capacitados para operar sinais e prodígios dos quais não vemos correspondentes hoje (2Co 12:12). Por último, foram dotados de inspiração e infalibilidade para escrever a Bíblia. Por esse motivo são chamados “fundamentos da Igreja”, assim como os profetas do Antigo Testamento (Ef 2:20).
Na verdade, o termo “apóstolo” significa basicamente “enviado” e há quem, além dos Doze e de Paulo, tenha recebido esse título na Bíblia, como Silas e Barnabé (At 14:14; 2Co 8:23). Porém, os modernos autodenominados apóstolos se entendem como na mesma categoria dos Doze e de Paulo. Contudo, os Doze e Paulo estão numa categoria à parte, não tendo nomeado sucessores. Quem sempre se achou sucessor dos apóstolos foi o papa. É somente o ranço católico na alma evangélica que permite que tais autodenominados apóstolos tenham sucesso em nosso meio.
2.             A ideia de que pastores são mediadores entre Deus e os homens. No catolicismo, a igreja é mediadora entre Deus e os homens e transmite a graça divina mediante os sacramentos, as indulgências, as orações. É através dos sacerdotes católicos que essa graça é concedida, pois são eles que, com suas palavras, transformam na missa, o pão e o vinho no corpo e no sangue de Cristo; que aplicam a água benta no batismo para remissão de pecados; que ouvem a confissão do povo e pronunciam o perdão. Em alguns casos, o padre é visto como “outro Cristo”, um canal de mediação entre o rebanho e Deus. 
Essa noção de mediação humana passou para os evangélicos com poucas alterações.
Até nas igrejas chamadas históricas os crentes brasileiros agem como se a oração do pastor fosse mais poderosa que a deles, considerando-o um mediador entre eles e os favores divinos. Esse ranço católico vem sendo cada vez mais explorado por setores neopentecostais do evangelismo, a julgar por práticas já assimiladas como “a oração dos 318 homens de deus”, “a prece poderosa do bispo Fulano”, “a oração de poder da irmã sicrana, que é profetisa” etc.
3.             O misticismo supersticioso no apego a objetos sagrados. O catolicismo no Brasil, por sua vez influenciado pelas religiões afro-brasileiras, semeou misticismo e superstição durante séculos na alma nacional, enaltecendo milagres de santos, posse de relíquias, aparições de Cristo e de maria, unção e santificação de objetos, agua benta, entre muitos outros. Hoje, há um crescimento espantoso entre setores evangélicos do uso de copo d´água, rosa ungida, sal grosso, pulseiras abençoadas, pentes santos do kit de beleza da rainha Ester, peças de roupas de entes queridos, oração no monte e no vale, óleos de oliveiras de Jerusalém, água do Jordão, sal do vale do Sal, trombetas de Gideão, cajado de Moisés... A imaginação dos líderes e a credulidade do povo são ilimitadas. Um amigo meu contou ter presenciado práticas estranhas como venda de pedaços do salmo 23 para a preparação de um chá que cura vícios, gente que dorme com uma Bíblia debaixo do travesseiro com a alegação de garantir bons sonhos e páginas ungidas por “apóstolo” que são vendidas para serem colocadas nas paredes das casas dos crentes, entre outras coisas. Um outro mencionou evangélicos que guardam “patuás”, “amuletos”, “sal e alho” dentro de recipientes em suas casas, assim como os adeptos do candomblé, para se livrar dos “maus espíritos”.
Esse fenômeno só pode ser explicado, a meu ver, por um gosto intrínseco pelo misticismo impresso na alma católica dos evangélicos.
4.             A separação entre sagrado e profano. No centro do pensamento católico existe a distinção entre natureza e graça idealizada e defendida por Tomás de Aquino um dos mais importantes teólogos da Igreja Católica. Talvez Aquino não pretendesse separar natureza e graça, apenas propor uma distinção entre ambos os conceitos. Mal compreendido ou não, na prática, sua distinção contribuiu significativamente para a aceitação de duas realidades coexistentes, antagônicas e frequentemente irreconciliáveis: o sagrado, substanciado na Santa Igreja, e o profano, que é tudo o mais no mundo lá fora. Os brasileiros aprenderam durante séculos a não misturar as coisas: sagrado é aquilo que a gente vai fazer na Igreja: assistir à missa e se confessar. O profano – meu trabalho, meus estudos, as ciências – permanece intocado pelos pressupostos cristãos, separado de forma estanque.
É provável que essa visão dicotômica da vida anteceda o catolicismo romano, tendo origem no gnosticismo. Catolicismo e gnosticismo têm muito em comum, como a visão dicotômica de realidade representada na oposição entre matéria e espírito. Como o gnosticismo é mais antigo, deve ter entrado na cultura católica medieval incipiente através do paganismo que infestou as fileiras da Igreja a partir do século IV. Por volta da mesma época, surgem os mosteiros, caracterizando a busca da espiritualidade que consistia, em parte, no ascetismo que sufocava a matéria para que o espírito pudesse libertar-se.
Hoje, os evangélicos parecem partilhar a mesma visão. Falta-nos uma mentalidade que integre a fé às demais áreas da vida, conforme a visão bíblica de que tudo é sagrado. Por exemplo, na área da educação, temos por séculos deixado que a mentalidade humanista secularizada, permeada de pressupostos anticristãos, eduque nossos filhos, do ensino fundamental até o superior, com algumas exceções: em outros países, os evangélicos têm tido mais sucesso em manter instituições de ensino que, além de serem tão competentes como as outras, oferecem uma visão de mundo, de ciências, de tecnologia e da história oriunda de pressupostos cristãos. Numa cultura permeada pela ideia de que o sagrado e profano, a religião e o mundo, são dois reinos distintos e frequentemente antagônicos, não há como visão integral surgir e prevalecer a não ser por uma profunda reforma de mentalidade entre evangélicos.
5.             Somente pecados sexuais são realmente graves. A distinção entre pecados mortais e veniais feito pelo romanismo católico vem permeando a ética brasileira há séculos. Segundo essa distinção, pecados considerados mortais privam a alma da graça salvadora e a condenam ao inferno, enquanto os veniais, como o nome já indica, são mais leves e merecem somente castigos temporais. A nossa cultura se encarregou de preencher as listas dos mortais e dos venais. Dessa forma, enquanto se pode aceitar a “mentirinha”, o jeitinho, o tirar vantagem, a maledicência etc., o adultério se tornou imperdoável. O presidente Lula foi se tivesse ocorrido uma denúncia de escândalo sexual, tenho dúvidas de que teria sido reeleito, ou de que teria sido reeleito por uma margem tão grande. Nas igrejas evangélicas – onde se sabe que, segunda a Bíblia, todo pecado é odioso e quem guarda toda a lei de Deus e quebra um só mandamento é culpado de todos – é raro que alguém seja disciplinado, corrigido, admoestado, destituído, ou despojado, por pecados como mentira, preguiça, orgulho, vaidade, maledicência, entre outros. As disciplinas eclesiásticas objetivam via de regra pecados de natureza sexual, como adultério, prostituição, fornicação, adição à pornografia, homossexualidade etc. embora até mesmo esses estão sendo cada vez mais aceitáveis aos olhos evangélicos. Mais um resquício de catolicismo na alma dos evangélicos?
O que é mais surpreendente é que os evangélicos no Brasil estão entre os mais anticatólicos do mundo. Só para ilustrar (e sem entrar no mérito da polemica), o Brasil é um dos poucos países no qual convertidos do catolicismo são rebatizados nas igrejas evangélicas. O anticatolicismo brasileiro, todavia, concentrou-se apenas na questão das imagens e de Maria, e em questões éticas como não fumar, não beber e não dançar. Não foi e não profundo o suficiente para fazer uma crítica mais completa de outros pontos que, por anos, vêm moldando a mentalidade do brasileiro, como mencionado. Além de uma conversão dos ídolos e de Maria a Cristo, os brasileiros evangélicos precisam de conversão na mentalidade, na maneira de ver o mundo. Temos que trazer cativo a Cristo todo pensamento e não somente os nossos pecados. Nossa cosmovisão precisa também de conversão (2Co 10:4-5).
Quando vejo o apego de grandes massas ditas evangélicas às práticas medievais católicas – de objetos ungidos e consagrados para o culto a deus, busca por bispos e apóstolos, recurso a práticas supersticiosas –, pergunto-me se, ao final das contas, o neopentecostalismo brasileiro não é, na verdade, um filho da Igreja Católica medieval, uma forma de neocatolicismo tardio que surge e cresce em nosso país onde até os evangélicos têm alma católica.

Um dos efeitos mais destrutivos dessa mentalidade romanista é que pavimentou em vários aspectos o caminho para a entrada do liberalismo em vários aspectos o caminho para a entrada do liberalismo teológico no cenário evangélico. Pois o ponto central dessa mentalidade é, em última análise, o enfraquecimento das escrituras como a Palavra de Deus, a única regra de fé e prática. A autoridade e a mediação dos bispos e apóstolos, o uso de objetos ungidos como pontos onde fé se apoia, a ênfase em determinados pecados em detrimento de outros igualmente condenados na Bíblia serviram para enfraquecer a autoridade das escrituras dentro do evangelismo. Assim, o catolicismo preparou os evangélicos para aceitarem outra fonte de autoridade além da Bíblia. Nesse contexto, a tarefa dos liberais, de desacreditá-la sutilmente como a infalível e autoritativa Palavra inspirada de Deus, tornou-se mais fácil, relativizando seu sentido e expurgando-a de seu caráter normativo.


1. Philosophia Libera: Christian Faith And The Freedom of Science, Amsterdam: Tyndale Press, Published for the Research Scientists’ Christian Fellowship.

LOPES, Augustus Nicodemus. O que estão fazendo com a Igreja: Ascensão e queda do movimento evangélico brasileiro. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p. 25-31.

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